terça-feira, 11 de agosto de 2009

Nem tudo é novela


A arte de escrever romances quase nunca obedece ao rigor histórico e o contexto sociocultural em relação aos sentimentos dos apaixonados. Geralmente, ao lermos tais novelas, ou assistirmos a suas adaptações na telona, nos deliciamos com amores impossíveis. Não como de Romeu e Julieta, que somente eram de famílias rivais, mas sim amores completamente impossíveis, como o do filme O Último Samurai, de Edward Zwick, onde a personagem japonesa Taka apaixona-se pelo personagem interpretado por Tom Cruise. Alguém que não conheça a cultura japonesa minimamente pode dizer "que isso, que preconceito, é claro que uma japonesa esposa de um samurai falecido poderia apaixonar-se por um gringo". Aliás, acredito que tal fato passou batido, totalmente ignorado, sem qualquer análise mínima, na maior parte de audiência. Freud ensina que o amor é a supervalorização, e uma japonesa viúva de um samurai, imersa nos valores do Bushido, jamais, de nenhuma forma, poderia admirar como marido um não-samurai, quanto mais amar um americano. O filme tenta resolver isto fazendo o personagem de Cruise introjetar o espírito samurai, outra coisa sem a mínima possibilidade de poder acontecer. Tal casta japonesa era de tão intrincado padrão de comportamento, de personalidade forjada num modo único, com experiência na formação do caráter desde tenra idade tão próprias, inigualáveis, aprendendo técnicas de alta complexidade, com segredos singulares, na máxima disciplina, baseados em uma tradição milenar, que é impossível a um indivíduo adulto, ainda mais estrangeiro, adequar-se suficientemente a uma imitação a mais grosseira que seja do que seria um verdadeiro samurai.

Na sociedade ocidental, com sua visão completamente míope, é prática comum tomar partes das outras culturas somente para o desígnio que convém, ignorando todo resto, é claro que não causa espanto um filme desses não ser motivo de risos. Tomemos por base a ioga (yoga), prática esotérica da religião Hindu. Tem por finalidade unir corpo e espírito no todo do universo, porém sua prática virou aula de academia. O mesmo se passa com o Maracatu, que virou simples brincadeira de Carnaval, quando encerra uma cerimônia religiosa de coroação de Reis africanos. Tais fenômenos de redução de algo muito mais intrincado para um simples atividade, é a cara da sociedade brasileira, diga-se de passagem. Como num iceberg, a maior parte da compreensão da humanidade fica mergulhada no mar da pobreza mental e espiritual.

Voltando ao tema dos samurais, o filme lembrou-me muito o livro de James Clavell, cuja capa da edição em inglês ilustra o começo deste post, como há de notar quem não for tapado. Caso eu não tivesse lido antes as 1808 páginas de Musashi, de Eiji Yoshikawa, eu acho até que teria boa impressão da obra de Clavell. Obviamente a leitura de Yoshikawa não me tornou um japonês, muito menos um samurai, mas deitou luz sobre muitos aspectos principais da cultura japonesa tradicional. Um destes aspectos centrais é a tradição de levar todas as atividades a um verdadeiro state of the art, demandando décadas de prática intensa para aperfeiçoamento mesmo de atividades coloquiais, como fazer uma roupa, fazer louça, tomar chá, fazer armas, aprender lutas e artes marciais. Como no filme de Zwick, há um amor impossível no romance clavelliano, com Blackthorne e Mariko virando amantes.

Quando era pequeno e assistia a desenhos animados, notadamente havia em muitos momentos um personagem que era o diferente da "tchurma", e se, quando menos você esperava, eles enturmavam-se. Podia ser um ET, um extrangeiro, um diferente qualquer. Acredito que tal repetido ciclo de introdução do estranho para o grupo teria a inteção de reforçar a idéia nas crianças que o diferente é igual a nós, e este tipo de bobagem. Não devemos ser preconceituosos com os diferentes, devemos na medida do possível deixá-lo entrar em nosso grupo social, interagir sem preconceitos com tais pessoas, mas definitivamente não devemos fazer deles cópias nossas, nem devemos desejar sermos iguais a eles. Em essência somos todos seres humanos, seres vivos, mas dentro de nossos corações e em nossas almas precisamos nos diferenciar uns dos outros, não pelo lado negativo, para explorarmos, nem para querermos ser superiores, numa teimosia infantil, como um jovem que vira um revoltadinho punk de boutique.

Respeitar as diferenças, repito, quando isto for possível, é muito diferente de eliminarmos as diferenças, notadamente quando há um certo consenso que as religiões mas afastam do que agregam as pessoas. Daí surge o laicismo forçado, notadamente anticristão. Afinal, as ideologias do século XX, como ensina Meira Penna em A Ideologia do Século XX, são verdadeiras religiões civis. Uma nova entidade surgiu, o povo, uma massa compacta e impossivelmente homogênea. Essa falta da heterogeneidade das gentes pode até explicar essa forçosa idéia que somos todos iguais. Quanta besteira. Como se a vida pudesse ser gozada em sua plenitude somente caso fossemos todos iguais, ou ao menos parecêssemos todos uniformes, como num quartel. Mais uma vez, quanta besteira, mesmo no quartel existem os postos, as diferenças, a pluralidade de gostos...

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Esta reflexão sobre amores impossíveis levou meus pensamentos a outras aplicações desta magnífica capacidade humana de contar histórias inverossímeis. Vem logo à minha cabeça Marx, com sua besteira sobre o que é valor, sua idiota concepção da economia e sobre a luta de classes. Insidiosamente estes e muitos outros pensamentos infundados contaminaram as resoluções de muitos nações inteiras, Chefes-de-Estado, e outros tantos revolucionários, que como os leitores desavisados de Clavell pecaram pela falta de conhecimento prévio de certos valores primários, que uma vez compreendidas mostrariam o absurdo do conteúdo de certas ideologias, tão possíveis quanto o amor das japonesas das histórias supracitadas pelos estrangeiros, tão praticável quanto um adulto tornar-se um samurai que não fosse uma caricatura mal feita e desastrosa. Em tempos onde o que importa é a futilidade, o que importa é realmente parecer, muito mais do que ser, fica complicado dizer que nem tudo que reluz é ouro. Desde remotos tempos há citações para sepulcros caiados, lobo em pele de cordeiro, e expressões análogas, então, o que tem a visão mais apurada dos fatos deve tentar apaziguar sua raiva interior pela falta de compreensão da maioria, e tentar, humildemente mostrar a verdade. Até porque não foi ontem que Andersen escreveu o conto A Roupa Nova do Rei, e sim em 1837, e mais do que nunca, hoje todos querem parecer inteligentes e ver o que não existe...

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